Ultimamente tem me inquietado uma questão: o que é ser artista? Já adianto que não sou estudioso de estética e muito do que vou discutir aqui é baseado principalmente em minha própria experiência com a arte. Quem me conhece pode, neste momento, ter ficado curioso por eu ter utilizado “experiência com a arte”, ao invés de “experiência como músico ou, no limite, como artista“. Essa é a questão. Ultimamente eu não consigo dizer de mim que sou músico ou artista sem experimentar um certo constrangimento, uma inquietação, um desconforto. Não me sinto mais confortável “dentro” destas palavras. Como linguista, uma ressalva: não pretendo aqui dizer qual é ou deve ser o sentido correto dessa ou daquela palavra; isso é absurdo, pois os sentidos das palavras são entidades que escapam ao controle individual ou mesmo social; o sentido das palavras se dá, se constrói, se modifica ou se mantém, no uso concreto que as pessoas fazem delas através do tempo e do espaço. Ninguém é dono das palavras, embora exista muita gente que acredita ser… Mas vamos ao assunto deste texto!
Meu desconforto pode ser descrito com o seguinte raciocínio: se pessoas como Mozart, Picasso, João Gilberto, Miles Davis, e outros tantos grandes representantes em todas as modalidades, são chamadas de artistas, seria adequado eu, no modo com faço e me relaciono com a arte, ser também chamado de artista? Aliás, nem precisa ir tão longe. Basta tomar como exemplo as pessoas por aí que dedicam sua vida à arte, embora sejam menos reconhecidas. Sou digno de ser chamado de artista, assim como elas? Não seria eu mais apropriadamente um “fazedor de arte”, um “executor de arte” ou algo do gênero, assim como um engenheiro seria o executor de um projeto, enquanto seu criador seria o arquiteto? Você já consegue vislumbrar o que está na raiz dessa inquietação?
Pois bem, pois bem… Comecei a me perguntar, nessa perspectiva, o que me diferencia exatamente em relação às pessoas da “classe” citada acima e concluí que a principal diferença está em nossa relação com a arte, relação que pode ser analisada em dois eixos: o da técnica, por um lado, e o da busca por uma linguagem própria, por extravasar uma espécie de idiossincrasia estética insconciente, não premeditada. Os grandes nomes da arte foram pessoas que uniram uma grande técnica a uma enorme inquietação estética, como se nada no mundo artístico já consumado desse vasão a sua necessidade de expressão. Ou seja, essas pessoas sentiam a necessidade visceral de inventar uma nova forma de expressão estética e dedicaram suas vidas a isso. Não possuo nenhuma das duas qualidades. Sou um bom instrumentista e cantor, e só. Não sinto dentro de mim essa necessidade que move o grande artista. Em geral, me sinto satisfatoriamente “expressado” nas obras já existentes.
Então pergunto novamente: sou mesmo um artista, um músico? Músico, sim, se entendido como um “fazedor de música”, em oposição à criador. Ou teríamos que inventar uma outra palavra para designar tais “grandes artistas”. “Mestre”, “gênio”, e quetais são por demais genéricas para esse fim. Mas, tudo bem. Como eu disse no início, não há como lutar contra os sentidos. Na melhor das hipóteses, introduzimos neologismos que, com sorte, pegam, mas aí lá se foi o controle e muito provavelmente em pouco tempo terão sofrido modificações. O que quero ressaltar porém, não são os termos, mas o questionamento.
Vejo muitos artistas por aí, nos dias de hoje, que são mais apropriadamente meros “fazedores de arte”, inclusive há exímios. Talvez representem uns 95% dos artistas em geral, pra chutar um número. Nada contra, ressalto. Mas será que é isso que eles querem ser mesmo? Será que não estão tão acostumados com “fazer arte” que nem percebem que não criam e não dão ouvidos a uma possível inquietação estética que vem lá do mais fundo de seu ser? Vejo pessoas com grande talento, com um vasto imaginário pronto para ebulir e se realizar como uma linguagem própria a ser desenvolvida, mas que parecem simplesmente presas no modus operandi medíocre que toma conta do mundo artístico atual. Não é de estranhar que o “conceito” tenha atingido a importância que atingiu nos dias de hoje. Arte está ficando um artigo raro por aí. Há muito conceito e só. E, em geral, conceitos tomados de empréstimo alhures e mal compreendidos.
Bem, bem… Talvez chegamos até aqui apenas para concluir que a pergunta inicial não faz sentido, afinal. Mas para mim, ela tem um sentido muito claro. Ser artista não é “fazer arte”. Ser artista não é um ofício, uma profissão, mas um estado (permanente) de espírito ou talvez uma natureza. Ser artista é não ser capaz de escapar ao chamado produzido por uma inquietude estética própria. É buscar meios e meios para extravasá-la, incluindo aí a técnica apurada. É não ter escolha a não ser a de dedicar a vida a essa busca por expressão. Daí podermos estender este conceito de “artista” a grandes gênios da ciência. Estas foram pessoas que, da mesma forma, atenderam a um chamado interior, foram atrás dos meios de expressar uma inquietação com o mundo, expressar seu modo diferente de ver o mundo. Ser artista é isso: ver o mundo de um modo diferente, mergulhar nesse mundo e buscar os meios de extravasar essa inquietação. Aliás, não há escolha para o verdadeiro artista: ele só encontra quietação em sua arte.