José Hermógenes gostava de dizer “bendita doença”, em relação à tuberculose que quase o matou aos 35 anos de idade. Isso porque a doença o levou à prática de yoga e uma radical transformação em sua vida, vindo a se tornar um precursor da yoga no Brasil. Tendo recebido prognóstico de 3 anos de vida, ao assumir de vez o yoga e a nova vida, veio falecer em paz aos 94 anos.
Tenho pensado muito nisso, nos últimos dias. Sei que, para muitos, essa pandemia trouxe muitas dificuldades, enormes. Assim como para muitos, a tuberculose não serviu para uma guinada na vida, mas sim para a piora e até mesmo a morte, infelizmente. Mas hoje, mais que nunca, consigo entender muito bem o que Hermógenes sentiu em relação à doença, pois é o que sinto em relação à pandemia.
A pandemia impõe desafios? Claro. Estou há 5 meses sem ver minha filha, da qual sinto muito falta. Mais de quatro meses sem ver vários familiares e amigos queridos. Sinto falta de várias atividades fora de casa. Me entristeço e me compadeço muito das pessoas afetadas mais fortemente por essa crise: profissionais de saúde e outras áreas essenciais, os doentes e as famílias que perderam seus entes queridos, seus empregos, suas empresas, enfim. Compreendo as dificuldades também enormes daqueles que tem filhos pequenos e precisam trabalhar em casa. Não desconsidero nada disso. Oro todos os dias por todos, sinceramente pedindo para que encontrem formas de superar as adversidades.
Mas, pessoalmente, o que tenho a dizer da pandemia representou na minha rotina: bendita pandemia.
Há quase 5 meses que me exercito e me alongo praticamente todos os dias. Talvez só na adolescência isso aconteceu e ainda assim só como pratica livre de esportes. Também medito todos os dias. Faço yoga 3 vezes por semana. Aprendi a cozinhar novos pratos. Li vários livros. Vejo minha mãe e irmãs virtualmente todos os domingos, algo que nunca aconteceu desde que saí de minha cidade natal. Concluí um estudo de comunicação não-violenta de 13 semanas com minha família e agora estou indo para o final de um segundo grupo, com amigos. Nos últimos 3 meses comi carne apenas uma vez e me sinto super bem com uma alimentação mais saudável. Deixei de tomar 3 ou 4 doses de café diariamente, para tomar uma xícara de café a cada 2 ou 3 dias. E nunca me senti tão desperto durante o dia!
Fiz várias gravações de vídeos musicais com amigos queridos e fiz também produções caseiras usando meu equipamento de gravação que estava parado há muito tempo. Tenho inúmeras conversas significativas com minha companheira e, dado que nos conhecemos há apenas um ano e meio, pudemos nos conhecer com uma profundidade que demandaria anos na “vida normal”. Fazemos nossos jantares, assistimos algumas “lives” musicais juntos, assistimos alguns filmes e séries. Oramos juntos diariamente e fazemos um culto no lar toda semana.
No trabalho, mesmo sendo defensor do ensino presencial, me vejo animado e feliz por aprender uma nova modalidade de ensino, o ensino à distância. Tive, como vários colegas, que me reinventar, que pensar em formas de transformar a distância em benefício. Tive a sorte de contar com alunos maravilhosos e que se comprometeram em fazer dar certo comigo. Trabalhei mais, mas não por mais tempo: pois aprendi a ter disciplina, a me levantar bem cedo e dormir 7 a 8 horas por noite. Assim, estou mais concentrado e consigo estabelecer objetivos mais bem delineados. Tenho muito menos distrações e isso aumentou o tempo das minhas horas de trabalho.
Nessa pandemia, amadureci como profissional e como ser humano.
Tudo isso, por causa dessa bendita pandemia. Havia mais coisas que eu gostaria de fazer e não fiz? Sim, havia. Mas tenho consciência que neste caso eram objetivos demasiados. Isso era resquício do “velho normal”, em que assumimos responsabilidades demais, compromissos demais. Corremos demais, nos distraíamos demais e, ao cabo, vivemos de menos. O meu sentimento mais comum era o de estar devendo. Devendo à minha saúde, devendo à minha filha, devendo ao meu trabalho, devendo aos meus familiares e amigos, devendo ao meu violão, devendo, devendo, devendo… Hoje, isso é bem mais raro. Hoje meu sentimento é de estar vivendo.
As horas ainda parecem voar, é fato. De quando em quando, o cansaço do isolamento e das notícias tristes vem mais forte. Mas, apesar disso, há muito tempo que não sinto a vida tão de perto.
Bendita pandemia! Ela criou, para cada um nós, condições que seriam inimagináveis há pouco tempo. Condições que nos permitiram separar o acessório do fundamental. Que nos permitiram olhar criticamente para nossa rotina anterior e refletir sobre quais atividades estavam contribuindo para nossa saúde, equilíbrio e felicidade, e quais atividades estavam atrapalhando. Foi como de repente suspender um grande experimento, pausá-lo um pouco e observar.
Tive a chance de aprender tanto e sei que sairei dessa pandemia uma pessoa diferente, mais consciente de si, do que precisa e do que quer.
Torço sinceramente para que mais pessoas estejam vivendo isso ou que, ao lerem meu relato, consigam apreciar a oportunidade que esse momento nos traz. Essa pandemia pode ser bendita para todos nós. O caos é gerador de transformações e mudanças. É assim em tudo na natureza. O planeta está nos chacoalhando, para que possamos sim nos reinventar, individualmente e como coletividade. Aproveitemos!
Aproveitemos essa rara oportunidade.
Um beijo no coração de todos.